A vila Tatú-Bola, no sul do estado do Maranhão, formada no final do século XIX, viria a ganhar status de distrito e anos depois a emancipação, tornando-se um município progressista, exportador de arroz, farinha, fava, feijão, pinga de engenho, rapadura etc. O padroeiro da vila foi mantido e é um santo prestigiado por todo o Brasil. É o santo casamenteiro que, como água de enchente que cresce em rio raso, desencalha milhares de donzelas ávidas, à espera de um sapo que se faça príncipe encantado através da sua milagrosa intervenção.
Não foi o caso. A linda moça tinha pretendentes… com sobras. De olhos verdes, cabelo de cunhã, pele morena avermelhada, dentes alvos como a macaxeira, seios altivos e uma bunda lisa, pétrea e dasafiadora a lembrar dois graúdos côcos da praia… Pois bem! Essa fofura cuja beleza despertava inveja nas meninas da vila, além do complexo de vira-lata nos que por ela babavam, chamou a atenção, foi tesão à primeira vista, quando os olhos nos olhos dela – os do filho do abastadíssimo fazendeiro e viúvo Henrique Mendes – cravaram-se! Esse moço de nome Henrique Filho, era o irmão mais novo de três irmãs prestes a ficar para titias, não por escassez de beleza, mas pelo excesso de exigências na hora da apartação de pretedentes.
Foi em um vesperal dentro da programação dos festejos de Santo Antônio, ao som de saxofone e clarinete, o qual ganharia a noite em forma de baile até às oito da manhã do dia seguinte, que Henrique Filho dançou, conversou besteiras e coisas sérias com a bela Rosalina e até beijaram-se às escondidas.
Tamanho achado para um jovem com boa formação acadêmica – adquirida em São Luis e no Rio de Janeiro – a capital federal, era o que estava faltando na sua readaptação àquela boa vida de preguiça para um príncipe de vila.
Na cultura e nos valores morais da época, um rapaz tão fino somente se casaria – e também suas irmãs – de forma arranjada ou consentida pelos pais. A pretendente, no mínimo, para ser considerada apta, tinha que ser de família rica e tradicional. O enlace para um jovem tão distinto, faria sentido aos olhos de todos se fosse a junção do seu império patrimonial com outro equivalente. Uma pobretona, de pouca escolaridade, como Rosalina, por mais que fosse a belezura da vila, tinha um severo impedimento: era filha de um reles dono de chácara e ainda que sua família vivesse condignamente, não tinha, entretanto, posição econômica para se equiparar com a da família do jovem futuroso.
Sabedor do orgulho dos seus e consciente que em sua casa não encontraria aprovação, Henrique Filho firmou o namoro de forma muito sigilosa. Tentava encontrar uma fórmula para persuadir o pai e as irmãs.
Numa vila pujante como aquela, não bastando os festejos paroquiais que se arrastavam por sete dias, havia, ainda, as desobrigas: era quando o padre Gusmão chegava para regularizar perante a igreja, com o sagrado matrimônio, a situação dos que já levavam uma vida a dois, oportunidade em que, também, fazia o queima, ou seja, casava no atacado dezenas de casais que aproveitavam a oportunidade pela presença do respeitado padre.
Ainda que fosse um evento para gente humilde, Henrique Filho viu ali, com antecedência, uma oportunidade para impor um fato consumado à sua família. Como parte do preparo, chegou a transportar, às escondidas, parte de suas roupas e calçados para a casa do futuro sogro João Silva. Depois, foi reservadamente à beata, representante do padre e deu-lhe o seu nome e o de Rosalina, sua noiva, para se casarem no dia do queima. Apenas pediu para a secretária beata deixar uma vaga no livro de registros, sem colocar seus nomes, para evitar que algum curioso, ao dar com os olhos, fizesse isso chegar aos ouvidos do seu pai antes da hora oportuna, que seria depois do casamento.
O plano deu certo. Casaram-se no dia do queima. O príncipe da vila, sequer sabia o tamanho da afronta ao pai e às irmãs.
Quando o velho Henrique Mendes recebeu, surpreendido, os parabéns de um curioso compadre que foi visitá-lo… caiu desmaiado! As duas filhas mais novas, presentes, o chacoalharam, passaram alcóol em suas mãos e nas narinas para ele voltar a si.
O golpe foi quase insuportável. A filha primogênita, que não presenciara a cena, quando soube, também desmaiou. Até porque, sendo a mais velha, detinha certa autoridade por causa da falta da mãe.
Com um ambiente tenso, de orgulho ferido, os Mendes foram à luta liderados pelo triunvirato feminino. Partiram, então, numa bonita charrete para a chácara do João Silva, agora sogro de Henrique Filho.
A irmã líder, ao chegarem na bonita chácara de João Silva, com grande terreiro bem varrido e bancos de madeira bem distribuídos sob vistosas mangueiras, chamou a todos para uma reunião ao ar livre. Não quis entrar no gostoso casarão de adobe.
– Você vai ter que voltar para casa. Vai desistir desse casamento mal programado, feito às escondidas, sem o consentimento do nosso pai e de todas nós. Eu, particularmente, estou quase no lugar de nossa mãe. Comecei cedo a cuidar de você e por isso merecia, também, satisfação. E o pior: se você não for, carregará para o resto da sua vida o peso na consciência por causar a morte do nosso querido pai. Ele está acamado, mal come e só fala que quer morrer.
Em prantos, o jovem casal se despediu. Na casa do resgatado, o velho logo se recompôs e Henrique Filho, magoado, percebeu que o caso não era de vida ou morte. Tinham montado uma encenação para convencê-lo. As irmãs, mal disfarçando, se revezavam em vigília para não deixá-lo escapar.
O pai de Rosalina, abandonada em plena lua-de-mel, cada dia mais preocupado, via sua filha definhar, chorando sempre, quase louca de tanta paixão. Foi quando um amigo lhe fez uma observação.
– Você já foi falar com o Major Barros?
– Não!
– Pois você está perdendo tempo!
Major Barros era a maior autoridade moral da vila. Sua patente não era comprada e nem institucional, de carreira. Era honorífica, adquirida pela respeitabilidade imposta junto a todos. Também viúvo, vivia em um casarão com um longo corredor e tinha como governanta uma filha de escravos do seu pai que praticamente criara os seus dois filhos, bem situados na vida lá no Rio de Janeiro.
O Major Barros, orgulhoso, zeloso por protocolos e dando sempre uma aura de solenidade ao seu entorno, só atendia alguém depois que a pessoa passasse pelo crivo da governanta Adelina.
– Bom dia! Quero falar com o Major Barros!
– Bom dia! O que houve seu João Silva?
João Silva fez o relato a Adelina, todo esperançoso, torcendo intimamente para ela aderir à sua causa e com isso ajudá-lo a convencer o Major Barros a abraçá-la. Afinal, pelos muitos anos de convívio, ela conquistara muito prestígio com o velho, certamente, também, por ser muito eficiente no trato com as pessoas e deu certo. Tão logo ouviu o relato do humilde chacareiro, aderiu à sua luta de Davi contra Golias.
-Olhe, eu vou falar com ele! Não sei se vai lhe receber agora. Está no momento sagrado de leitura dos jornais que chegaram hoje de São Luis e a cara dele está muito enfarruscada. Mas aguarde! Sente-se aqui nesta sala!
Ao chegar próxima ao Major Barros, Adelina plantou-se ao lado dele que, em uma cadeira de vime, sequer levantou os olhos da saborosa leitura. Ela, totalmente adepta da causa que abraçara, ali ficou plantada, sem arredar o pé, quase com birra. O Major, por curiosidade e impaciência, indagou, sem levantar os olhos:
– O que foi dessa vez, Adelina?
Ela, com voz condoída, retalatou o fato, tim-tim por tim- tim.
– Faz o João Silva vir até aqui!
Quando João Silva entrou e o cumprimentou, ouviu algumas perguntas:
-Tem quantos dias que separaram os dois?
– Cinco dias!
– Sua filha gosta dele e ele gosta dela?
– Major Barros, os dois são apaixonados e estão quase fazendo besteira!
– Entendi! Pode voltar para sua chácara.
– Com todo o respeito que o senhor merece, não estou vendo nenhuma orientação, nenhuma decisão…!
– Volte! Pode voltar!
A governanta, que tudo acompanhava, sinalizou discretamente para João Silva despedir-se e sair.
No longo corredor, João Silva voltou-se para a governanta e falou:
– Não me conformo, ele precisa me dizer o que vai fazer. Então, parou e sem dar atenção à governanta, voltou ao Major.
– Desculpe-me, mas preciso de uma saída mais arrematada!
– Seu João, faltam apenas dois dias para inteirar os sete de prazo que carregaram o rapaz! Esse tipo de situação, nunca dura além de uma semana. Volte para sua chácara. Bote sossego em sua cabeça!
– Continuo sem entender!
– Seu João, QUANDO A FRUTA É BOA, A PIPIRA VOLTA! Passe bem!
João Silva se foi inconformado com aquela resposta sem sentido. Para ele, o velho estava começando a ficar gagá. Ao chegar em sua chácara, de longe, avistou um casal sentado em um banco. Eram os dois pombinhos abraçados, transbordando amor. Em seus pensamentos, João Silva concluiu: ” O Major Barros nunca erra, o gagá sou eu por não ter entendido a charada dele.
Alguns anos depois, o casal de apaixonados, com dois filhos, tornou-se o elo entre os Silva e os Mendes. Os meninos tornaram-se o xodó dos avós e da velha governanta. As filhas do Henrique Mendes, se ainda vivas, estariam à procura de um pretendente que, pelo rol de exigências, nunca deu as caras. Ficaram no caritó.
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JOSÉ EPIFANIO PARENTE AGUIAR
Sou um Baby Boomer, portanto um véi esquisito para as gerações X, Y, Z e um monstrengo para a geração Alfa.