Indígenas Kanamari na aldeia Massapê, Terra Indígena Vale do Javari, Brasil.
CRÉDITO DA IMAGEM: Bruno Kelly/Amazônia Real
Durante séculos, muitas pessoas no mundo ocidental acreditaram que a Amazônia era uma floresta despovoada e intocada. Isso nunca foi inteiramente verdade. Pesquisas recentes revelam que a Amazônia é administrada por povos indígenas há milhares de anos. Neste Dia Internacional dos Povos Indígenas do Mundo, partilhamos como – através da criação de solos férteis e da selecção e cultivo cuidadoso de diversas espécies de plantas e árvores ao longo de milénios – transformaram a Amazónia num vasto jardim cultivado.
No passado, os investigadores ocidentais consideravam amplamente a Amazónia como um ambiente inóspito, incapaz de sustentar grandes populações devido ao seu solo pobre e inadequado para a agricultura. Essa ideia ambientalmente determinista foi reforçada pelos estudos realizados pela cientista americana Betty Meggers (1921-2012), pioneira na arqueologia amazônica.
Segundo essa visão, a Amazônia era uma região periférica e escassamente povoada da América do Sul. Acreditava-se que as inovações vinham de fora da floresta. Por exemplo, pensava-se que a cerâmica se originou nos Andes, onde existiam civilizações mais complexas com sociedades estruturadas pelo Estado.
Hoje, porém, a maioria dos arqueólogos discorda dessas opiniões. Junto com uma legião de colaboradores, o arqueólogo brasileiro Eduardo Góes Neves lidera o movimento para reescrever a história antiga da floresta, dando aos habitantes indígenas da Amazônia o reconhecimento e o protagonismo que merecem. (1)
Neves e outros estudiosos mostraram que, contrariamente às crenças anteriores, a Amazônia era um centro de inovação tecnológica. A sua investigação revelou que a região já foi densamente povoada por 8 a 10 milhões de pessoas, datando de pelo menos 8.000 anos, e provavelmente muito mais tempo. A redução da população observada pelos primeiros colonos europeus deveu-se provavelmente a epidemias devastadoras, como a varíola, que foram trazidas pelos próprios colonos e se espalharam rapidamente pela bacia, ultrapassando em muito o seu próprio avanço na região.
Grande parte de suas pesquisas concentra-se em evidências de modificações na paisagem. Devido à falta de rochas, os povos indígenas modificaram a terra por outros meios, como o cultivo de terra escura rica em nutrientes (conhecida como Terra Preta), geoglifos, montículos elevados e florestas domesticadas. Para estes últimos, estudos demonstraram como as árvores foram cuidadosamente selecionadas ao longo de milénios para fornecer recursos vitais aos habitantes da floresta.
Terra Preta, também conhecida como Terras Negras Amazônicas, é o ponto focal desta nova pesquisa. Este solo extraordinariamente fértil foi amplamente distribuído por toda a bacia amazónica já há 5.000 anos e continua a ser um testemunho da capacidade dos povos indígenas de transformar o ambiente de forma sustentável. Embora grande parte do solo da Amazônia tenha baixa densidade de nutrientes, as Terras Escuras foram deliberadamente cultivadas ao longo de gerações e mantiveram seus nutrientes durante séculos, demonstrando o profundo conhecimento ecológico e as práticas de manejo sustentável dos antigos habitantes da região, e desafiando a noção de que os solos da Amazônia são em grande parte inférteis e incapazes de sustentar grandes populações.
Em setembro de 2023, um grupo de trinta autores publicou um artigo na Science Advances que ajuda a explicar as origens destas terras escuras. Com base em escavações arqueológicas e pesquisas etnológicas e entrevistas com o povo Kuikuro da região do Xingu, Brasil, o artigo prova que os povos indígenas estavam criando intencionalmente terras escuras com composições químicas semelhantes às encontradas em sítios arqueológicos. (2)
Entretanto, outros estudos mostram que muitas espécies de árvores dominantes na Amazónia – como a mandioca, a batata-doce, o cacau, o ananás e algumas espécies de pimenta – são o resultado de cultivo seletivo ao longo de aproximadamente 12.000 anos. (3) Esta prática de cultivo criou paisagens de abundância e diversidade, em forte contraste com as monoculturas e o desmatamento promovidos pelo agronegócio moderno.
“A própria floresta é a nossa pirâmide.”
Segundo Neves, os povos indígenas não apenas moldaram a floresta em termos de biodiversidade e fertilidade do solo, mas também construíram estruturas monumentais como estradas, canais e plataformas, com importância comparável às pirâmides de pedra das civilizações andinas.
“Ao contrário da cronologia oficial, que data o início da história do Brasil com a chegada dos colonizadores europeus em 1500, o território que hoje compreende (o Brasil) tem uma história muito antiga, que remonta a aproximadamente 12 mil anos. A arqueologia descobriu que, durante esse longo período, a Amazônia sempre foi uma região densamente povoada. Fragmentos de artefatos encontrados sob florestas supostamente virgens, geoglifos e a chamada terra escura são sinais significativos desta presença humana substancial na região”, disse Neves em entrevista. (4)
Proteger a Amazônia exige defender os direitos dos povos indígenas
A floresta amazônica que conhecemos hoje é o resultado do cuidado e das interações deliberadas entre os povos indígenas e a própria floresta ao longo de milênios. Qualquer proposta para proteger esta região inestimável e rica em biodiversidade deve incluir as contribuições intelectuais dos povos que melhor a compreendem. O seu conhecimento acumulado oferece soluções valiosas para a gestão florestal sustentável e métodos para enfrentar a crise climática.
No dia 9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas do Mundo, nós da Rainforest Foundation US homenageamos a rica história da floresta amazônica e sua herança cultural extremamente diversificada. Reconhecemos ativamente o papel vital dos povos indígenas hoje na construção de uma base de conhecimento inestimável e na contribuição para práticas de conservação sustentáveis na Amazônia e além. Compreender e apoiar as pessoas que salvaguardam e implementam estas práticas é crucial para construir um futuro resiliente face às alterações climáticas.
“A arqueologia não trata apenas do passado, mas também do futuro. Existem diferentes maneiras de viver e prosperar na Amazônia. O atual modelo dominante, que derruba árvores, queima florestas, contamina rios e transforma paisagens exuberantes em terras desoladas, não é o único possível. É possível viver dentro e fora da floresta sem destruí-la. Os povos indígenas são os grandes guardiões não só da floresta viva, mas também dos tesouros arqueológicos que ela esconde”, enfatizou Neves em entrevista recente. (5)
Quando questionado sobre por que os povos indígenas da Amazônia não construíram pirâmides, ele respondeu:
“A própria floresta é a nossa pirâmide.”