“Ela finge que não sabe que eu sei e eu finjo que não sei que ela sabe que eu sei. Entendeu, Gedeon? É assim que fazemos de nossa falsa moral um instrumento prático para nossa vida a dois.” (Feliciano)
Com 1,98m de estatura, destacava-se na multidão como a copa de uma castanheira ou um angelim-vermelho na selva amazônica. Feliciano, um grandalhão mal-acabado, sempre teve uma fealdade bonita de se ver. Com boca grande, dentuço, olhos esbugalhados – que nem bode enforcado – corpo ligeiramente arqueado para esconder a imponente estatura de baixinhos invejosos, enfim, tinha de administrar tudo isso diante da vida e o fazia muito bem: Sua alegria era radiante, sobrava-lhe espontaneidade, capacidade para se comunicar com desenvoltura, além da inteligência emocional que o tornava um apaziguador de qualquer encrenca que lhe trouxessem. Era a lei da compensação em pessoa: feioso ao extremo, simpatia idem! Qualquer piada contada por ele ficava engraçada. Em particular, sempre recuperava a alegria do confidente depressivo. Ao seu redor não faltava gente para ouví-lo. É pouco? Então, acrescente-se aí a fala fanhosa que sonorizava uma melodia sublime quando cantava. Está pouco? E aquele saxofone tocado daquele jeito! Nossa!…
Quem conhecia o seu carisma via com naturalidade ele a namorar as meninas lindas do seu entorno. Quem não o conhecia e de repente o via de mãos dadas com uma beldade, percebia, com ar de espanto, o contraste formado pela beleza postada ao lado daquela cara de assombração. Ele, junto com uma linda mulher, formava a estética do contraste.
Na comunidade, para eventos sociais, todos o convidavam. Com o saxofone, então, juntava muita gente.
Mas, se não há mal e nem bem que sempre dure e o tempo ajuda a impor essa realidade, Feliciano foi-se para Goiânia, casou-se, procriou, aposentou-se como bancário e, depois dos filhos criados, já idoso e sem um dos rins, desentendeu-se com a dedicada esposa, outra aposentada, e separaram-se amigavelmente. Os filhos, bem postados na vida, sentiram, mas nem tanto, o impacto da separação.
Feliciano, entretanto, sentiu o golpe, mas foi à luta. Retomou a vida social de outrora e de volta à cidade natal, sua pacata Miracema do Tocantins-TO, foi morar sozinho. Já não tocava como antes, a voz e os pulmões não tinham a mesma força e as noites em claro tornavam-no debilitado para o dia a dia.
Atenção! Feliciano não iria ficar sozinho por longo período. Em pouco tempo casou-se outra vez. Na nova vida, com uma moça trinta e cinco anos mais nova, Feliciano fazia de tudo para parecer menos velho e mais saudável, numa luta inglória contra as marcas do tempo no corpo esquálido e depauperado. A novinha, sua segunda mulher de papel passado, técnica em enfermagem, mas fazendo faculdade à noite na cidade vizinha, indo e vindo em transporte coletivo contratado a cada semestre, era uma das mais animadas no vai e vem do percurso.
O garanhão Gedeon, um colega no transporte dos estudantes, em pouco tempo fez-se o amante dedicado daquela belezura, colega de trajeto.
Feliciano, pelas vias do fuxico, logo ficou a par.
Gedeon, sabendo que ele sabia, começou a circular com apreensão, sentando-se, aonde chegava, de costas para a parede. Torcia, intimamente, para não dar de cara com Feliciano, ou seja, com a tragédia anunciada, supunha, até porque não podia prever, sem um friozinho na barriga, o que se passava em sua cabeça enfeitada. Apenas tinha consciência do que nela implantara: um par de chifres, essa coisa tão corriqueira e banal que ainda causa auê em todos os estratos sociais. Portanto, os chifres eram mais que suficientes para assanhar o ti ti ti nas rodas locais.
O inevitável aconteceu: Feliciano foi ao encontro de Gedeon na casa do próprio. Lá, a doméstica deu-lhe assento e foi cuidar dos seus afazeres. Gedeon era casado, mas a esposa estava para o trabalho, e ele,
sem saber da indesejada presença de Feliciano, plantado no seu sofá, chegou e, tomado de surpresa, indagou:
– O que o senhor faz aqui, homem de Deus?
– Acho que você sabe!
– Não!…Ainda não sei adivinhar!
– Vamos ao ponto: Você está saindo com minha mulher, a Val. Sua esposa, acomodada e intimidada, finge que não sabe. Eu, não! Vim aqui para resolvermos isso!
– É simples! Como é ela que me procura, seu Feliciano, proíba-a!
– Não! Não é simples assim!
– Como não?
– Você é jovem, certamente é bom de cama e supre certas carências que eu, com a grande diferença de idade e a saúde debilitada, não dou conta de suprir!
– Seu Feliciano!… Moço! Estou sensibilizado! O senhor chegou aqui, sereno, sem fazer escândalo, tentando contornar uma situação! Eu estava desconfortável, tanto pelo temor quanto pelo respeito que tenho pelo senhor que, pelo jeito, tem idade para ser meu pai. Agora que o senhor me procurou tão civilizadamente, me deixando aliviado, qual é a saída?
– Sou um homem prático!… Ou pragmático para você que é acadêmico. Já vi muita coisa nessa vida. Não vou embarcar em vulgaridades e muito menos provocar um escândalo. Quer saber? Eu nem me sinto corno. A Val é minha mulher mas é, sem se dar conta, a minha cuidadora. Transar com ela, quando consigo comparecer, é apenas um bônus para mim. Nunca insinuei para ela, ser ela uma cuidadora, apenas para não quebrar a magia, o encanto, a doçura do coito. Nem quero que ela saiba, por vias tortas, que a vejo, também, como cuidadora. Precisa haver alguma fantasia. E acredite: é mais inteligente dividí-la com você que bancar o indignado, despachá-la, perder a mulher e a cuidadora, as duas em uma. Ela, como auxiliar de enfermagem, faz curativos em meu esfincter anal relaxado, “troféu” que conquistei numa irresponsável aventura de sexo grupal, na qual batizaram a minha bebida e um tarado por boga macho, que depois paguei para o apagarem, fez esse estrago todo, impondo-me o uso de fraldão para todo o sempre. Graças à minha Val e ao fraldão é que não saio por aí exalando certos odores. Nunca vi a Val fazer cara de nojo! É tão prendada no gerenciamento da nossa casa que tenho comida quentinha, roupa lavada, casa arrumada, remédios na hora certa… Estou feliz! Quanto ao sexo, eu, sozinho, mal dava conta da tarefa, mas agora temos você para nos ajudar… Melhor: Eu tenho você para dividí-la comigo e a coisa bem conversada, assim, não descamba para a violência. Formamos, acredite, isso que agora tá na moda, um belo trisal, ainda que eu não vá para a cama com vocês diretamente. Essa é a nossa vida a três. Antes de eu sair por aquela porta, faço-lhe um pedido: seja discreto. Sei que fazer e contar que fez e com quem fez, é melhor, para alguns, que o ato de fazer, mas por favor, não fique alardeando para os amigos. Vamos preservá-la, respeitá-la e valorizá-la. Ela não é qualquer uma, agora é a nossa mulher. Que seja uma dama para nós dois, merecedora do nosso respeito. Passe bem!
Estatelado com a impressionante resenha do velho Feliciano, Gedeon, mal respondeu:
– Até…!
Passados alguns dias, Gedeon, aos poucos foi perdendo o tesão por Val. A um amigo confidente, explicou:
– Já não é mais a mesma coisa: Antes tinha o sabor da aventura, o cheiro de sangue no ar. Olhares que reprovavam e outros de admiração e inveja. Se o velho queria me brochar com aquela lábia, acertou em cheio! E o pior: ainda me arrastou, com sua imaginação criativa, para dentro de um trisal do tipo comédia. E aqueles dedos que ela pedia para eu lamber na hora dos aconchegos? Era para assanhar o meu fetichismo, minha tara por dedos com unhas bem pintadas! Ah! Como eu babava! Porém, são os mesmos dedos que ela usa, como boa enfermeira, para passar pomadas no fiofó do velho! Eu sou um cara que tenho bloqueios até para sair com aposentadas, pois vejo, com meus preconceitos, algum prazo de validade vencido nelas. Portanto, meu estado psicológico se esfrangalhou. Com perdão para minha baixaria, a Val não merece que eu diga, mas na realidade estou comendo a mesma ração do vovô Feliciano. Não me sinto bem, agora, no patamar dele. Todo homem, em tudo na vida, quer sempre mais!
Dois meses depois, Gedeon, sempre se esquivando, a se esconder da Val e de Feliciano – até o curso na faculdade foi trancado… Entretanto, não pôde evitar um encontro com o “sócio” que, oportunamente, chamou-o para conversar:
– Quero que você seja o padrinho do nosso filho que eu, sozinho, vou assumir como meu. A Val está grávida!
Gedeon, amarelado pelo impacto da notícia e do estranho convite, tentou fazer uma cara de normalidade:
-Seu Feliciano, agradeço a consideração, mas me deixe longe disso. E vou ser franco e me abrir: Estou psicologicamente bloqueado, até brocha fiquei. Assim como não se deve falar nojeiras na hora do almoço, também, faz um gigantesco efeito em mim, pensar que os dedos da Val, que eu tanto lambi, cuidam de seu orifício retal, se me dá licença para eu me expressar assim…
Desculpe-me! Sei que é preconceito! A assepsia da Val é nota dez, mas eu sempre fui exigente com as coisas que levo à boca. A essa altura, não consigo tirar das minhas ideias, que o seu anus danificado impregnou definitivamente aqueles lindos dedos. O encanto foi quebrado! Chega de sociedade! Arranje outro padrinho! Tenha um bom dia! Fui!
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Sou um Baby Boomer, portanto um véi esquisito para as gerações X, Y, Z e um monstrengo para a geração Alfa.
*Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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