Ilca, nascida por mãos de parteira – lá nos anos cinquenta – em uma família de gagos da zona rural à 83 km da sede do município de Miracema-TO, é a quarta filha de uma prole de doze. Simpatias havia para tratar gagos, mas sempre com resultados duvidosos.
Naquele ermo, o contato com o mundo civilizado era pelas ondas de um rádio em formato de caixa de madeira com quatro botões e uma antena conectada ao dito por um fio, a qual ficava suspensa na ponta de uma vara de bambu no oitão da casa com teto de palhas de piaçaba, paredes de taipa e chão batido com maio. Esta casa, a mais centralizada da região, ficava de dois à seis km de distância dos vizinhos mais próximos que, com muita disposição, para lá se dirigiam atrás de mantimentos em um quiosque ao lado e também ouvir aquela caixa que cantava, tocava viola, falava e dava notícias de um mundo estranho, além de chiar bastante.
Na região, os sons mais comuns eram o canto dos pássaros, com destaque para as escandalosas siriemas, o coaxar do sapo, a estridulação do grilo, o relinchar do cavalo, o grunir do porco etc.
Ilca era uma moça da pele cor de cabaça, esguia, olhos de avelã, sovacos a la Baby Consuelo anos setenta, gostosamente cabeludos, não por “orientação sensual”, mas por falta de barbeador.
Ilca era a mais gaga dentre os gagos da família, formosa aos olhos dos mais atentos, mas um tipo comum para quem não sabe garimpar beleza na simplicidade selvagem daquele mundão perdido, onde nem Indiana Jones pisou para pegar um bicho de pé.
Aos dezesseis anos incompletos, na missa oficiada uma vez por ano naqueles confins, em treze de dezembro, dia de Santa Luzia, a protetora dos olhos, Ilca se casou.
Três anos depois, com um filho na barriga e outro engatinhando, abarrotada de afazeres domésticos e ajudando na roça, Ilca, não bastando, era sempre espancada pelo marido bêbado, preguiçoso, “um pra nada.” No seu corpo não faltavam hematomas.
Entre as galinhas criadas na larga pelo terreiro, tinha uma fraca das pernas que se arrastava e nada de ficar curada de uma bicheira aberta entre as pernas. A creolina e os mais variados sumos não faziam efeito. Nem as folhas da manguabeira braba pisada com pimenta malagueta davam um jeito.
Tenório, o marido de Ilca, sempre alertava:
– Hora dessas vou matar essa coisa e jogar bem longe. Essa bicha é uma carniça viva. Não temos precisão dela, mulher!
Um certo dia, muito bêbado, resmungando e zanzando pelo terreiro, sentiu falta da bípede e perguntou por ela, ao que Ilca lhe respondeu num tremendo esforço, fechando os olhos toda vez que travava a fala:
– Sa sa sabe aquele dia que que tu tu che chegou bê bê bêbado com com fome e e a a bu bu abusando, ta ta tarde da noite? Te te dei um um ca ca caldo morno e in in insosso! Era ela! Nã nã não sen sen sentiu o o fe fe fedor!?
Tenório reagiu:
– Hoje eu te mato, gaga do Diabo! Dito isso, avançou sobre uma já precavida Ilca que, mesmo assim, não conseguiu se esquivar de um murro na boca. Rápida e determinada, apanhou a faca peixeira que estava sobre um banco ao lado e lhe desferiu uma punhalada na altura do umbigo. Plantou a peixeira até o cabo e, furiosa, por achar pouco, chacoalhou-a dentro da pança de um Tenório de olhos arregalados.
Desta vez, com raiva e sem guagueijar, Ilca falou:
– Esta aqui, ó!.. Tá vendo!? É pra tu ir tomar o resto do caldo nos quintos do inferno!
Ninguém gostava de Tenório. Tenório foi um defunto sem choro. Seus parentes, lá no Maranhão profundo, nem sabiam do seu paradeiro. Foi levado numa tipóia e enterrado a dois km de distância do barraco onde moravam, dentro da mata, local quase inacessível. Era para apagar a memória dos acontecimentos. Nenhum boletim foi resgistrado na sede do município. Para lá nem rodovia tinha.
Poucos meses depois, Ilca, ganhou um novo parceiro e agora, amigada e sossegada, vive sua vida dura, mas sem os abusos causados pelo finado, enterrado debaixo de um pé de mirindiba, ao lado de um formigueiro numa sepultura coberta de malva.
Dia desses, Ilca, já idosa, beirando os setenta, foi convidada por Ana Maria Braga para, ao vivo, ensinar o Brasil como é que se faz um bolo cacete. Pense! Pense num bolo!… Eita bolo bom!
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Sou um Baby Boomer, portanto um véi esquisito para as gerações X, Y, Z e um monstrengo para a geração Alfa.
*Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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